Futuro Motociclista

Unknown | 21:02 | 0 comentários


Análise de Um Futuro Motociclista. Por CLAUDIO FERRO

Olá Amaral. Encontrei o seu blog casualmente, diga-se de passagem, bastante interessante. Para ser franco, tenho tudo para odiar motos. É bem verdade que entendemos pouco os nossos sentimentos. É habitual reagirmos em face de nossas experiências e informações, muitas de má qualidade a que ponderarmos com inteligência, conhecimento e razão. Há um consenso entre muitos de que a antítese do amor seja o desprezo. Ódio é uma relação de amor mal resolvida. Amaral, sou médico ortopedista por formação profissional. Pode ficar tranquilo que não exerço mais a ortopedia e não detenho interesses profissionais no seu blog ou entre amigos acidentados. Iniciei atividades na ortopedia por volta de 1980 ou 1981. Em 84 estava empregado em Clínicas de Ortopedia e, em 1987 concursei o título de especialista da SBOT – Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia. Foram muitos plantões, milhares de atendimentos e observação profissional de incontáveis lesões. Muitas destas lesões foram causadas por acidentes de motocicleta. Creio que nestes anos de atuação, inúmeros pacientes sequer chegaram às minhas mãos. A mesa do cirurgião geral, do neurocirurgião ou mesmo o leito do asfalto retiveram muitas pessoas. Hoje, com 52 anos, estou convicto que o viver requer constantes desvios e buscas por novos caminhos. Mudamos a todo instante e os caminhos são escolhidos por nós. O destino é como a mão que pinta. De pouco serve se inexistir a alma do artista. Uma questão importante no ato de viver reside em procurarmos entender as razões e motivos que promovem nossas escolhas. É importante o homem procurar entender o porquê muda de opinião e o porquê de tal caminho entre as opções que possua. Alterar o próprio ponto de vista regrado por estudo da situação é o mínimo que um indivíduo possa fazer em benefício de si mesmo. É típico do ser humano reagir em face da própria experiência e opinião. É pouco usual o homem rever o próprio ponto de vista embasado em estudo, pesquisa e observação. Utilizamos pouca inteligência e somos refratários a novos conhecimentos e experiências. A humanidade é assim de um modo geral, bem como não é afeita em permitir outrem de exercer os seus direitos opção e escolha. No último carnaval, levei um escorregão e quebrei o tornozelo esquerdo. Aconteceu. Cai da própria altura. Jamais pensara ser possível ocorrer algo assim comigo até então. Como fui ortopedista por tantos anos, acabei analisando a minha situação e decidi o melhor tratamento para o meu caso. Por razões técnicas (uma fratura estável e sem necessidade de cirurgia), optei por imobilização removível (não convencional) e mobilização precoce da articulação. Na terceira semana de evolução da fratura, comprei uma Caloi Confort e um rolo de treinamento com a intenção de mobilizar o tornozelo, bem como recuperar a massa muscular do membro inferior. Para alguns colegas, iniciar a recuperação nesse tempo foi precoce. Mas, como médico, confiava em meu paciente e, como paciente, confiava na técnica do meu médico. Como médico estava tranquilo, pois o paciente não iria me processar em caso de falência do tratamento, não é mesmo? Voltando a vaca fria; pois não sei se falo mais que a boca ou se escrevo mais que os dedos; não resisti ver a bicicleta parada e, na quarta semana de evolução da fratura, subi na bike e dei umas pedaladas pela rua onde moro. Não foi decisão emocional. Efetuei estudo radiológico prévio e constatei os sinais mínimos de consolidação bem como o excelente alinhamento dos fragmentos. Havia um risco nesta conduta e a opção de esperar um pouco mais de tempo. Escolhi um caminho. De onde surgiu a idéia de assim proceder? Não sei. Sabia que dosando a força, a velocidade e a cadência da pedalada conseguiria acelerar a recuperação. Pedalar doeu o pouco que previ e não complicou o tratamento. Pelo contrário. Confiava naquela relação médico paciente e possuía a certeza de que seria possível pedalar, se a atividade fosse executada com a devida técnica. Depois dessa pedalada na rua, minha alma gritou em silêncio: valeu! A prática subsequente com a bicicleta rendeu-me recuperação espantosamente mais rápida que o habitual e reascendeu desejo sufocado desde a adolescência. Enfim, mesmo em recuperação, redescobri que dominar as duas rodas é um ato que nos arremete para o fantástico a cada pedalada ou passeio. Algumas pessoas são assim: necessitam fazer um ato tido por fantástico pelo seu mundo interno. É uma coisa lúdica, onde a necessidade do prazer assume preponderância e, em muitos casos, suplanta a razão ou mesmo motiva o indivíduo a correr um risco. Andar em duas rodas é algo que se aloca nesse gênero de pensamento. Existe um risco e uma recompensa. Cumpre a cada qual dosar sua utilização dentro do limite de competência do equipamento, das normas de trânsito e de segurança, para que a satisfação do sonho não se transforme em pesadelo. Como podemos perceber, duas rodas pedem mais que equilíbrio físico. Certamente, o ato aflora energias em nosso espírito que se torna mais liberto e aventureiro. A escola da vida nos ensina ser pouco recomendável subjugar nossas emoções, tanto quanto é pouco recomendável nos entregarmos cegamente aos ditames de nosso espírito aventureiro. Por este motivo, dominar as duas rodas pede uma reflexão entre a compensação e riscos assumidos. Também pede técnica arrojada, competência e compromisso de bem utilizar a técnica que detemos. Conduzir duas rodas somente com a emoção é meio caminho andado em direção a uma tragédia pessoal e familiar. Dominar duas rodas impõe ao nosso olhar ser preciso às linhas dos caminhos físico, a despeito de o quão impreciso é o caminhar pela vida. Exige do nosso raciocínio máxima exatidão na elaboração de estratégias. Estas estratégias não se resumem na condução física da bicicleta ou da moto. Há estratégias outras, como vestimenta adequada, escolha de veículo compatível a nossa estatura e competência técnico-financeira, além de capacete de tamanho e qualidade corretos ao uso pretendido, uma previdência social e um bom plano de saúde, sem o que inexistirá suporte em caso de infortúnio. A verdade é: ao subirmos em uma bicicleta ou em uma moto, não sabemos quando ou como iremos descer do veículo. Podemos cair e nos ferir de forma grave. Minha experiência profissional é incontestável neste sentido. Não reconhecer esta verdade é atitude infantil e leviana, tanto quanto transferir para terceiros os ônus de um infortúnio. Duas rodas... A qualquer tempo temos que manobrar a magrela. Muitas vezes, a circunstância impõe manobra radical. Por esta razão duas rodas é muito mais que emoção, afinal, a nossa integridade está em jogo, sendo dependente de diversos fatores, como técnica, condição física, condição do equipamento, da pista, emocional, do tempo... Ver as coisas passando... Sentir o prazer do vento, ou mesmo dominar a máquina aos gritos de sua fúria é mera retórica poética. O chão e o horizonte... Parece que tudo ganha mais vida. As sensações iludem. É bom pensar: o horizonte, a cada passo é mais distante. Nem a moto pode alcançar. Prudência e paciência, ou chão vai te abraçar. Hoje, estou no terceiro mês de evolução da fratura. Uma voltinha básica de bicicleta no quarteirão é quase de lei. Se estiver chovendo, ponho a Caloi Confort no rolo de treino e dou umas pedaladas. Se estiver cansado ou com preguiça, dou uma dormida. Depois do cochilo levanto uns pesos, faço uns tira pança (abdominais)... E porque estou falando de fraturas, riscos pessoais e bicicletas, se o tema do teu blog é motocicleta? Amaral, faz mal para a amizade que se inicia dizer que dei esta volta toda porque falo mais que a boca e escrevo mais que os dedos. Veja lá! É porque resolvi anuir aos meus instintos e enfrentar minha resistência interna: matriculei-me em Moto-Escola. Vê se pode? Ex-Ortopedista, cinquentão e andando de bicicleta e moto? Para tanto, o dinheiro da habilitação foi o de menos. O importante foi tomar a decisão. Perder o medo de me quebrar não foi a motivação. Seria uma prova de imbecilidade de minha parte. A verdade é que o desejo pela experiência lúdica nos arremete e, a sensação de poder conferida pelo domínio da máquina rende nossa sanidade. Desconheço quem resista viver um sonho na realidade. Andar de bicicleta e moto é como sonhar acordado. Lamentavelmente, nossos sonhos, por vezes, se transformam em pesadelos. Assistimos diariamente motociclistas destituídos de auto-respeito e condição técnica trafegando libertinamente pelas ruas e avenidas dos grandes centros. Na maioria das vezes são meninos com máquinas visivelmente em péssimas condições de manutenção, fazendo manobras radicais por entre veículos parados ou não e sem quais equipamentos de segurança. Há também os casos de motos de elevada cilindrada trafegando em velocidade de pista pelas ruas e avenidas. Ambas as situações denigrem a imagem das motocicletas e dos motociclistas. Preparar-se para poder enfrentar situações adversas é o mínimo que se espera por parte de uma pessoa que resolva subir em duas rodas. Isso não se resume nos equipamentos de segurança. A habilitação legal não se ocupa da postura psicológica do condutor em como bem conduzir. Poucos são os condutores de moto que se preocupam com a própria segurança. Somando ao fato a desinformação e a falta de educação social para o trânsito, teremos sempre as opiniões em contrário ao uso das duas rodas. Como pessoa e profissional, entendo e aceito uma opção de risco desde que com o devido respeito a técnica e normas de segurança. Ao fim da primeira aula, conseguia fazer o oito e contornar as marcas dos cones. Dominar o básico da moto foi uma sensação fantástica. Bem sei que nem comecei a engatinhar na condução de duas rodas motorizadas. Dominar o objeto manter respeito pelo seu alto potencial nocivo é prazeroso, faz bem enorme ao íntimo e não se traduz em covardia ou mesmo imperícia. Minha esposa tem dito que mudei depois da fratura, que deveria ter quebrado o tornozelo há mais tempo. Os textos que li sobre ciclismo são contundentes em afirmar que pedalar promove equilíbrio físico e mental, pontos de capital importância na relação entre as pessoas. Outro ponto importante citado pelos livros de ciclismo é a necessidade de bom preparo físico para o esporte. Do ponto de vista fisiológico, o exercício realmente auxilia no equilíbrio entre corpo e mente. Em base do exposto, creio que muitos motociclistas estejam carecendo de uma bicicleta e um pouco de ginástica. Não entendo nada de pilotagem. Dizem algumas pessoas que me conhecem, que sou excelente condutor de automóveis. De minha parte, sempre procurei me integrar com as máquinas a que me proponho utilizar. Procuro senti-las, quer seja uma furadeira, uma bicicleta ou um carro. Penso existir uma energia entre os homens e as máquinas. Canalizar bem esta energia é absolutamente necessário para que, em base da boa relação entre ambos, um resultado eficiente e saudável surja. Em minha visão, é necessário conquistar a amizade da máquina, demonstrando muito respeito e atenção para com ela. Trabalhar bem com uma máquina é como montar bem em um cavalo. Sem uma boa aproximação, sem respeito, sem confiança e sem técnica, o animal ou não permitirá nossa subida e cavalgada ou nos derrubará durante o caminho. As máquinas possuem personalidade e competências. É preciso aprender a conhecê-las e desvendá-las com máxima paciência. Quando chego para as aulas, sinto que a moto fala comigo: descubra-me, que te desvendarei ao sabor dos ventos, pelos caminhos. Ela não fala que vai me matar ou me aleijar. As máquinas são mais educadas que os homens. Elas pedem e reclamam para si, a todo instante, nossa máxima atenção. Dois dias após a quarta aula; não sem antes pesquisar; comprei uma Yamaha Fazer 250. Disse o vendedor que a moto será entregue em trinta dias. Escolhi a cor que inexistia na loja. Eu não só pesquisei como pensei muito antes de comprar a Fazer. Conclui ser um direito meu permitir o aflorar de novas experiências e suas consequentes energias. Percebi que se o meu instinto reclama ações mais perigosas, não será reprimindo-o que me tornarei melhor. Tampouco conseguirei ser melhor abraçando atividades como ciclismo em via pública ou motociclismo sem a devida reflexão e negligenciando cuidados mínimos de segurança e preparo emocional, físico e financeiro. A verdade é: ao subirmos em uma bicicleta ou em uma moto, não sabemos como ou quando iremos descer do veículo. O dano de um tombo independe do tamanho, potência e velocidade do veículo. Não se conduz veículo com ódio (desequilibrado), com medo ou despreparado. O motociclista, independente do tamanho da máquina e tipo de passeio, tem que se precaver e providenciar vestimenta adequada, escolha de veículo compatível a própria estatura e competência técnico-financeira, capacete de tamanho e qualidade corretos, uma previdência social e um bom plano de saúde que o suporte em caso de infortúnio. A motocicleta é mais que uma opção de transporte. É uma opção de vida, onde detemos obrigações formais frente à escolha realizada.

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